Curiosamente, os tipos sanguíneos foram descobertos após o início das transfusões sanguíneas. Após algumas tentativas, eles perceberam que alguns receptores de sangue tinham uma boa aceitação da transfusão, enquanto outros desenvolviam reações que levavam à morte de forma quase instantânea. Por um tempo, especialmente devido à falta de tecnologia da época, suspenderam as transfusões até que conseguissem identificar a diferença das pessoas que sobreviviam para as que morriam.
Com o advento da microscopia eletrônica e de exames laboratoriais relacionados a anticorpos, descobriram que as membranas celulares das hemácias eram recobertas por proteínas que se diferenciavam das comumente encontradas nas outras células de forma rotineira. Essas proteínas estavam presentes em hemácias, leucócitos e plaquetas, mas em nenhuma outra célula fora do sistema hematopoiético.
Em testes laboratoriais, ao misturar sangue de várias pessoas, eles perceberam que algumas combinações permaneciam com a mesma consistência líquida de costume, enquanto outras se coagulavam de forma quase instantânea e em vários graus. Após inúmeros testes, perceberam que havia uma relação entre as proteínas diferentes das membranas, o grau de coagulação e a presença ou não de anticorpos nos sangues testados.
Hoje em dia, sabe-se que existem mais de 25 tipagens sanguíneas, mas nós costumamos ouvir mais sobre o ABO e o Rh, porque são os mais importantes causadores de reações cruzadas em transfusões – os demais, como o sistema MN, por exemplo, causam pouca ou nenhuma reação ou têm uma variação tão pequena na população (99% da população com o mesmo genótipo) que não é tão importante saber qual é o seu.
O sistema ABO tem essa nomenclatura, pois descobriram dois genes, o A e o B, que expressavam proteínas de membrana e criavam os fenótipos hoje conhecidos como A e B, respectivamente. Após um tempo, perceberam que era uma herança autossômica dominante simples, o que significa que você precisa ter apenas um gene para expressar o fenótipo, e com isso descobriram que uma pessoa poderia ser A e B ao mesmo tempo, dando origem ao fenótipo AB. Durante as pesquisas, também perceberam que algumas pessoas não possuíam nenhuma proteína, nem A nem B, em suas membranas, sendo estas conhecidas como 0 (zero, mas que se mudou para O para facilitar), além de terem identificado que elas tinham no seu genótipo, um gene com herança autossômica recessiva.
Além disso, descobriram que esses genes estudados produziam, de forma orgânica, fatores anticoagulantes contra outro tipo sanguíneo. Por exemplo: uma pessoa do genótipo A produz organicamente fator anti-B, assim como uma pessoa do genótipo B produz fator anti-A. De forma análoga, o tipo O produz anti-A e anti-B e o tipo AB não produz nenhum fator. É por causa desses fatores que temos a árvore de possibilidades das transfusões, e, por isso, uma pessoa AB pode receber doação de todos e o tipo O só pode receber de pessoas com tipagem O.
Daí, você me pergunta: como o tipo O pode ser conhecido como doador universal (ou seja, todo mundo pode receber o tipo O), se ele produz fator anti-A e anti-B? Elementar, meu caro. Os fatores produzidos corriqueiramente pelo nosso corpo não são suficientes para causar uma reação maciça que tenha repercussões clínicas em quem está recebendo a doação. Ou seja, a quantidade de fator anti-A e anti-B que uma pessoa recebe na bolsa é muito pouca. Mas nosso corpo pode produzir quantidades imensas de anticorpo como o fator anti-A, por exemplo, em um curto período de tempo, quando exposto a sangues de tipagens não compatíveis, levando a uma síndrome pós-transfusão que pode causar até morte.
Também conhecemos, além do sistema ABO, o sistema Rh. Ele tem esse nome, porque foi descoberto quando se realizavam experimentos em macacos da espécie Rhesius; posteriormente perceberam a presença do mesmo sistema em humanos. Ele tem uma herança genética bem definida que apenas expressa ou não uma proteína de membrana, denominando-o como tipo positivo (+) ou negativo (-). O fator Rh foi descoberto depois do sistema ABO, pois mesmo aplicando as regras de apenas realizar transfusão entre pessoas do mesmo tipo ABO, ainda havia muitos casos de reações pós-transfusionais, inclusive entre pessoas da mesma família (mãe-filho, irmãos, etc). Assim como o ABO, pessoas que têm tipo Rh negativo produzem uma fator anti-Rh, que também causa complicações pós-transfusionais. Um dos maiores exemplos da importância do tipo Rh é a doença da incompatibilidade materno-fetal Rh, também conhecida como eritroblastose fetal, que acontece em mães Rh negativo com um bebê Rh positivo, as quais, quando previamente sensibilizadas, durante o parto transferem para o bebê uma grande carga de fator anti-Rh, levando a uma hemólise (quebra de hemácias) maciça que pode ter sérias repercussões no recém-nascido. Felizmente, com o advento dos testes de tipagem sanguínea, essas complicações mais severas podem ser evitadas se o tipo Rh da mãe e do pai forem identificados durante o pré-natal.
Atualmente, apenas com a tipagem ABO e a RH podemos garantir uma taxa de sucesso grande em primeiras transfusões de sangue. Mas por que só na primeira? Como dito acima, existem muito mais tipos sanguíneos além do ABORh e nosso corpo é capaz de produzir anticorpos contra vários tipos de proteínas de membrana, mas, assim como em uma vacina ou alergias, ele só produz tais anticorpos após entrar em contato com o antígeno, no caso, as proteínas de membrana de um tipo sanguíneo não-ABORh.
Pessoas que recebem transfusões com frequência costumam ter mais dificuldade de acesso a bolsas de sangue. Se é difícil e nos preocupamos em ter bolsas suficientes para compatibilidade ABORh, imagine achar uma compatibilidade ideal para mais de 25 tipos sanguíneos!? Por isso, tão importante quanto doar sangue, é fazê-lo com peridiocidade. Você pode ser o par ideal de uma pessoa que precisa mais do que apenas uma bolsa de transfusão.
Imagen source – Freepik.com